Breves palavras sobre a possibilidade de Deus
Tu carne da Minha carne. Sangue do Meu sangue. Imagem da Minha imagem. Pó do Meu pó. Criação da Minha criação.
Sempre quiseste crer que Me podias influenciar. Inicialmente começaste por Me multiplicar. Usaste-Me para explicar o teu mundo. O Meu sopro no vento. O Meu calor no sol. As Minhas lágrimas na chuva. Ou a Minha urina no dilúvio. Os Meus dentes na guerra. O Meu punho na justiça. O Meu desígnio no teu.
Eventualmente concentraste-Me. Tudo Isto num Só. Depois menos que Isto. Abafaste o sopro, tiraste o calor, secaste as lágrimas, partiste os dentes, deslocaste muito convenientemente o punho. Da urina e do desígnio no entanto não abdicaste. Fizeste de mim não mais que mijo e ideias, não mais que um bode expiatório.
Agora procuras-Me de novo. Outros nomes, outras formas. Deixa-Me que te fale sobre formas, oh Homem.
Tu de facto foste por Mim criado. Eu existo enquanto Teu criador, e criador da tua realidade. Somos os mesmos. Eu escrevi-te. Defini-te em palavras. Procurei capturar a Minha essência, que agora também é a tua. Inicialmente eras um poema. Sentimento puro. E por isso conseguiste ter vontade própria. Cada perspectiva te dava um significado diferente, um propósito diferente. Eras um animal consoante a cor predominante da selva.
Entretanto conseguiste sentido. Ser mais que função, ou que reacção. Eras experiência e história que se transmitia pelos anos. E foste mudando para narrativa. Primeiro a tua voz era a Minha. Depois descobriste-te em Mim e a voz era a Nossa. Depois concluíste-Me como falso e a voz era a vossa. Depois separaste-te até de ti e a voz era a deles. Os de um passado distante.
A narrativa não era suficiente, perdia tempo com detalhes fúteis como noção de família, valores, respeito mútuo, admiração pelas coisas antigas e bem maiores que tu. Bem, quanto a estas, chamaste-lhes “Fenómenos”, e de narrativa passaste a descrição técnico-científica. Uma explicação que se explica.
E sempre esqueceste que as palavras eram as Minhas. Sempre o foram. Sempre o serão. Eu escrevi-te, e para que te lembres existem coincidências por de menos acidentais. Propositadas. O Meu desígnio e a Minha urina lá vão funcionando. Lá te vou castigando por te esqueceres, e ilustrando para que acredites, não em quem Sou, mas no que Represento.
O Destino um Livro, Eu o seu Criador. Tu, Personagem Viva, a Carne, daquilo que ainda é um Conto, uma Ideia que ganhou forma e autonomia da História que ainda é Minha.