Breve Discurso Sobre o Bolero do Coronel Sensível Que Fez Amor em Monsanto

Esta é a versão superior do original de Vitorino. É irónico ter nesta versão aquela que considero a melhor música do álbum. Um exercício então: listar todos os sub-textos na letra, para que não eu me esqueça, e dois ou três de vocês também não. Consideremos o título que descreve toda a cena. É uma canção sobre um coronel que foi feliz em Monsanto...  





Eu que me comovo
Por tudo e por nada
 

Automaticamente pinta-se na mente a imagem de um homem de maneiras austeras, mas dotado duma certa sensibilidade. Um soldado que se comove? 

Deixei-te parada
Na berma da estrada
Usei o teu corpo
Paguei o teu preço
Esqueci o teu nome
Limpei-me com o lenço 

Pragmatismo militar na ação? Ou a típica insensibilidade masculina perante o "ir às putas", esses objetos em forma de gente? 

Olhei-te a cintura
De pé no alcatrão
Levantei-te as saias
Deitei-te no banco
Num bosque de faias 

É o que é. Não interessa o sentimento, interessa a sensação! É assim que o nosso coronel se move. A personagem está revelada. 

De mala na mão
Nem sequer falaste
Nem sequer beijaste
Nem sequer gemeste,
Mordeste, abraçaste
Quinhentos escudos
Foi o que disseste
Tinhas quinze anos
Dezasseis, dezassete 

Ah, finalmente vemos a segunda personagem agir. A garota que virou prostituta. E o tratamento na mesma moeda ao mesmo tempo que se fala de preços? Delicioso! Pragmatismo profissional da rapariga na ação? Ou mera insensibilidade de quem está farta de ser tratada como um objeto?

Cheiravas a mato
À sopa dos pobres
A infância sem quarto
A suor, a chiclete
Saíste do carro
Alisando a blusa
 

Esta parte com a bateria faz a música levantar voo para um céu duma tristeza profunda. Impossível não simpatizar com a rapariga na berma da estrada. Nada no seu mundo é de valor para o coronel, e no entanto a vida prossegue. 

Espiei da janela
Rosto de aguarela 

Nada exceto, talvez, toda a rapariga. Autor insere paradoxo com duas estrofes, mete toneladas de sub-texto. É golo.

Coxa em semifusa
Soltei o travão
 
Que detalhe. "Coxa em semifusa." Não devia constatar o óbvio, mas está demais. Isto é uma canção, e o senhor Antunes conseguiu infiltrar uma referência a uma nota musical (meia fusa) e simultaneamente dar a entender que a miúda já esqueceu este coronel e voltou ao posto. EM TRÊS PALAVRAS! O Senhor António Lobo Antunes só usou três palavras. Define economia. O coronel, claro, fez-se ao caminho. Fim do ato segundo; o clímax da história já vai lá trás, muito lá atrás. 

Voltei para casa
De chaves na mão
Sobrancelha em asa
Disse: fiz serão
Ao filho e à mulher
Repeti a fruta
Acabei a ceia
Larguei o talher 

Voltamos à realidade. Sobrancelha em asa pinta o retrato e informa o que por aí vem. Aparências apresentam um homem comum, de família, a quem a consciência não influencia atitude. 

Estendi-me na cama
De ouvido à escuta
E perna cruzada
Que de olhos em chama
Só tinha na ideia
Teu corpo parado
Na berma da estrada
 

A consciência não só não pesa, como ficou mais leve e voou. Esta é uma personagem a quem o uso não declarado da prostituição mas tacitamente aceite é algo normal, com o paralelo de todo o momento encerrar uma certa mística. Há uma vulgaridade celebrada e esta é talvez a verdadeira razão pelo qual me comovo tanto com esta letra: retrata um período na História Portuguesa, mais forte nos anos 60, essa última década antes do início da emancipação da mulher portuguesa. Só em 1974 puderam todas as mulheres votar. Mas antes? "Antes eram os bons velhos tempos, antes do mulherio estragar o status quo." O moralismo é escusado. O que importa é a forma como está retratada uma realidade nossa em 49 linhas. Ou 169 palavras. Sucinto e poético, concretizado no modo que considero definitivo, pelos Boitezuleika. Vi-os em Barcelos.

Eu que me comovo
Por tudo e por nada
 

O nosso coronel comovia-se por um universo de detalhe subjacente a um quotidiano sem novidade nenhuma.