Quattro

I

Disseste que falaste sobre mim a alguém que te fez perceber o quanto me deves.
E eu poderia ter dito que lamentava o facto de ter sido necessária a ajuda do público.

O meu repúdio foi tão completo.
Esperavas que perguntasse mais. Que quisesse saber. Que me interessasse. Que prestasse atenção.

Não viste mais que uma porta fechada.

II
 
Apareceste sem convite e sem razão aparente. Suspeito que tenha sido uma tentativa de reclamar atenção, aliviar a consciência ou revisitar um passado há muito distante. Suspeito, porque sou culpado de ter feito o mesmo. De o ter feito contigo, e de o ter feito com a Q. Fiz sofrer muito a Q com a minha atitude, e espero, tenho confiança, que o que tive com ela tenha valido a pena a dor que lhe causei. Mas não me vejo a repetir tal façanha, nem vou permitir que mo façam a mim. Deixemos os mortos em paz.

III

Começam a faltar palavras. Ainda me surges, ainda me irritas. Um passado que não quero ver tocado, uma dor que não quero ver desperta. Disseste que falaste sobre mim a alguém que te fez perceber o quanto me deves.

Em Novembro de 2001 o meu pai morreu. Os nossos caminhos cruzaram-se algures no início de 2002. O que senti por ti em tudo estava influenciado pela maior perda que havia sentido na minha vida. Uma dor seca e muda do tamanho dum abismo sem fundo dentro de mim. Uma escuridão que decidi preencher com a luz que me davas. Dei-te um valor e um significado sem paralelo, como um homem sedento e perdido no deserto dá ao oásis na distância. Revisitar-te e reviver-te é reviver essa dor, é sentir um amor podre, assente numa metade desfeita em pedaços. A minha metade.

Não existe razão para voltar.

IV

Imagino-me a conversar contigo e a contar-te o meu percurso. Uma pequena parte de mim ainda quer que saibas. Não sei bem porquê, talvez guiado pela sensação que é possível mudar alguma coisa. Porque enquanto há vida, há esperança. Há uma esperança iludida, que com uma conversa talvez o passado se possa alterar, e possa olhar para ele com outros olhos, aplicar-lhe um valor diferente. Já fiz o mesmo quando considerei o meu passado familiar. Se isto tivesse acontecido, se aquilo tivesse sido. Pressuponho então que eu esteja neste momento a consolidar e a contextualizar de novo a nossa história, tua e minha. Não há nada que possamos fazer para alterar o que foi. Não vejo como relembrar-me constantemente do que aconteceu possa valer qualquer coisa que seja que eu possa retirar duma amizade entre nós. O que me aconteceu não foi ligeiro, nem breve. Demorou décadas a compreender e a assimilar. Não é algo que possa ser colocado de lado com leveza enquanto falamos dos nadas quotidianos. Enquanto me falas sobre a tua vida, e eu escuto atento e a sangrar. Os mortos ficam enterrados.

Espero que estejas bem. Espero que sejas feliz, e que faças outros felizes, porque é o que espero para mim também. Já achei que devesse ter sido mais gentil contigo. E achei que devesse ter sido mais brusco. Por ter sido visitado por ambas impressões, acredito que a minha resposta tenha sido perto da ideal. Um distanciamento polido. Preferia que nada disto tivesse acontecido, mas cá estamos.

E os mortos continuam enterrados.