O Veterano

Entardecia no planalto.

A paisagem era árida e a sua cor era amarela. A terra, as plantas, os animais. Tratava-se duma aridez que agora ruborizava com o cair do sol a oeste. Uma tintura avermelhada transformava o planalto e a vida que por lá passava, tornando-a sanguina de aspecto. Mas não de essência.

O sol mergulhava ponderadamente na terra, afundando com ele lenta e irremediavelmente a luz. Estavam sozinhos, sentados e abraçados um no outro a aguardar a chegada da escuridão. Soluçavam e suspiravam como duas amélias.

Não lhes tinha dó. Não lhes ia dar isso. Que nojo me metiam. Não sei se eram irmãos, ou amantes, ou familiares, ou amigos. A sua aparente "profunda solidão" metia-me nojo, por saber que ainda se tinham um ao outro. O final para eles chegava mas não o gramavam completamente sós.

Não como eu.

Então peguei no meu velho gira-discos-a-corda-e-vapor e escolhi um velho vinil, completamente adequado à ocasião. "Variações de uma Cacofonia" por Klaus Von W. Volume no máximo, e o pobre aparelho quase que cedeu de si. Cuspia vapor, chiava, enquanto a sinfonia começa a manifestar-se. A crescer. A tomar forma. Rapidamente o ar inundou-se com os graves dos pesados instrumentos de sopro e a dissonância das cordas, abafando a pobre relíquia que emite som. A banda sonora para a chegada do Inferno erguia-se.

"Sim. Ouçam!" berrei.

Eles continuavam abraçados e indiferentes a todo o ruído. Continuavam no planalto encaixados, mãos entrelaçadas, indiferentes ao som que perturbava toda a cena. Aquela paz estava congelada, e eles conformados com aquilo.

Que revolta. Era a única coisa que me habitava o fundo da barriga. Eles achavam mesmo que o fim chegava. Que a noite caía e não voltava a amanhecer. Que os animais e as plantas e as pedras amarelas, viravam vermelhas, viravam púrpuras, viravam pretas e era isto.

Tão inocentes. Se pudesse andar, iria até ao pé deles espetar-lhes um calduço a cada um. Segredar-lhes "amanhã há mais".

Porque o fim do mundo é assim mesmo. Julgamos que acaba tudo duma vez, quando na verdade o que acontece é uma entropia que se sublima, desfaz tudo ao nosso redor, tira o sentido da suposta civilização e retorna-a a cascalho e detritos, e depois volta a amanhecer.

E nós temos de comer os cacos. Viver com eles. Continuar. E eles andariam nisso juntos. Porque é que não viam isso? Seriam atrasados?

Eu não. Amputado, agarrado ao meu velho gira-discos-a-corda-e-vapor, eu teria que gramar com a queda da civilização tal como a gramei antes de cair das outras vezes. E lá por ter uma bala ainda na câmara da minha velha mata-homens, não era por isso que ia tomar ferro na boca esta noite.

Nop. Ia esperar pelo amanhecer.