Seria Melhor Se Não Estivesse a Chover
Esta cena passa-se num café.
Cá fora é cinza, e está uma chuva miudinha que pouco faz para encharcar os ossos, mas sintoniza o espírito para um tom grave e lento, como se a pequena luz que brilha dentro de nós estivesse submersa num pequeno pântano, lamacento.
Os personagens são dois, sósias ou talvez gémeos. A similaridade física é perturbadora, mas os jeitos e a forma de vestir são muito díspares. Um, António, é um rapaz aparentemente normal. Nada no seu comportamento se destaca. Veste cinza e preto, fala baixo e discretamente. Os seus gestos são reservados e controlados, os seus olhos atentos à sala. Observa, mas não interfere. É um espetador perante a vida, perante a realidade.
O outro é apelidado de "o Garrido". O seu verdadeiro nome foi esquecido, mas a alcunha diz tudo. Veste um casaco de capuz vermelho. Os nós dos punhos estão esfolados, os olhos raiados de sangue. Despenteado. Enquanto que o António é focado no olhar, "o Garrido" é vago e frenético. Salta de ponto para ponto, sempre na procura de algo com que interagir, normalmente na procura de um desafio, ou de uma briga. Tem dedos amarelados por causa do tabaco, que se movimentam muito enquanto fala.
"O Garrido" está sentado, um esgar no rosto, como se algo cheirasse mal. Não cá fora, dentro dele.
"Noite longa?" pergunta o António, enquanto chega e cuidadosamente puxa a cadeira. Não se quer destacar.
"Aye..." diz o Garrido. Tenta incorporar maneirismos desatualizados a todo o momento, num esforço de se tornar mais interessante.
"O que aconteceu?"
"O costume, amigo."
António levanta o sobrolho, cruza os braços. O Garrido continua.
"Havia esta miúda..."
"Mulheres de novo?", António, secamente.
"Havia esta miúda," continua o Garrido como se nem tivesse ouvido a pergunta, coçando o nariz, ostentando a mão esfolada como um emblema. "Havia esta miúda e eu ia jurar que esta era aquela. Tu sabes. A que me ia acalmar, a que me ia tornar mais como tu, amigo."
"Tu sabes que não tenho ninguém."
"Sim, mas tu consegues sozinho. Eu preciso de alguém que me acalme. Tu sabes que eu só quero guerra."
"Sim, só queres problemas. E pelo que vejo, até te tens safado."
"Mas é frustrante, porque..."
"Não estás a escutar". António interrompe. "A conversa é sempre a mesma. E depois estou cá eu para amparar as tuas derrotas. Continuas sem escutar."
"Mas..."
"Mas merda. Cala-te, que os detalhes sobre o que aconteceu não trazem nada de novo. A porra é a mesma. Viste uma miúda. Era gira, ou tinha qualquer coisa acerca do olhar dela que te dava uma falsa promessa que te ias esforçar para ser bonzinho ou leal. Mas a tua natureza é algo comprovado. Querias saltar-lhe em cima, e depois de uma cambalhota ou três, ias largá-la porque estavas farto. Porque o clamor dos sarilhos começa a soar alto, e lá vais tu feito cão atiçado criar problemas. Para quê?"
O Garrido fica tenso, pensativo. Por momentos, observadores diriam que o de vermelho iria esmurrar o de cinzento.
António continua como se nada fosse, como se não fosse a primeira vez, que não é. "Estás encravado, camarada. Eu sei que entre nós, tu és o mais esperto. Por te estares sempre a meter em merda e a ter de sair dela, tiveste de te fazer fino. Mas agora és cicatrizes. És noites mal dormidas. És desilusão."
Garrido engole em seco. "Desilusão para ti?"
"Para quem mais interessa? Eu sei que gostas de dar ares de quem ignora o que os outros pensam, mas tu e eu sabemos que a minha palavra é o que conta. Vejo-te a instituir sonhos e a partir relações e penso que tipo de homem serás tu?"
"Eu sou eu mesmo." Garrido, defensivamente.
"Vai à merda. Todos nós devemos seguir um ideal. Senão somos todos uns animais."
"Mas gostas de estar sozinho?"
António sorri e suspira ao mesmo tempo. "Nem por isso. Mas a alternativa, ficar com alguém pela mera companhia, é vazia."
"Foda-se, amigo! Mas e as necessidades..."
"Foda-se, camarada. As necessidades esperam."
"Sempre foste mais forte que eu, António."
"Não, apenas mais decidido e mais pragmático."
"Aye..." responde o Garrido, um sorriso malicioso a desenhar-se no canto do rosto. "Mas e divertir-te, que tal? Uma farra à maneira? Um nada partilhado entre amigos, ou entre amantes, recheado com gargalhadas e um encanto inocente pelo mundo? Que tal é viver secamente?"
"Não sou eu quem se está a queixar, a dizer que havia uma miúda..." defende-se António.
"Oh, fode-te, amigo! Não te queixas, mas também não celebras. És assim a modos que uma linha contínua pelo tempo, sem história ou novidade. Sem alegria ou tristeza."
"Mau, linguagem. Além do mais, tu é que me chamaste."
"Aye, chamei. Porque precisamos um do outro. Porque me levas ao sítio quando me lixo." constata o Garrido.
"E porque me dás a crença que ainda posso mudar um pouco do mundo, tocar alguém, através das tuas histórias." completa António.
"Tu pensas. Eu sinto." diz o Garrido, baixinho.
"Seria melhor se não estivesse a chover, camarada."
"Aye, mas os se's..."
"De nada valem. Vamos fumar. Arranja-me um."
Cá fora é cinza, e está uma chuva miudinha que pouco faz para encharcar os ossos, mas sintoniza o espírito para um tom grave e lento, como se a pequena luz que brilha dentro de nós estivesse submersa num pequeno pântano, lamacento.
Os personagens são dois, sósias ou talvez gémeos. A similaridade física é perturbadora, mas os jeitos e a forma de vestir são muito díspares. Um, António, é um rapaz aparentemente normal. Nada no seu comportamento se destaca. Veste cinza e preto, fala baixo e discretamente. Os seus gestos são reservados e controlados, os seus olhos atentos à sala. Observa, mas não interfere. É um espetador perante a vida, perante a realidade.
O outro é apelidado de "o Garrido". O seu verdadeiro nome foi esquecido, mas a alcunha diz tudo. Veste um casaco de capuz vermelho. Os nós dos punhos estão esfolados, os olhos raiados de sangue. Despenteado. Enquanto que o António é focado no olhar, "o Garrido" é vago e frenético. Salta de ponto para ponto, sempre na procura de algo com que interagir, normalmente na procura de um desafio, ou de uma briga. Tem dedos amarelados por causa do tabaco, que se movimentam muito enquanto fala.
"O Garrido" está sentado, um esgar no rosto, como se algo cheirasse mal. Não cá fora, dentro dele.
"Noite longa?" pergunta o António, enquanto chega e cuidadosamente puxa a cadeira. Não se quer destacar.
"Aye..." diz o Garrido. Tenta incorporar maneirismos desatualizados a todo o momento, num esforço de se tornar mais interessante.
"O que aconteceu?"
"O costume, amigo."
António levanta o sobrolho, cruza os braços. O Garrido continua.
"Havia esta miúda..."
"Mulheres de novo?", António, secamente.
"Havia esta miúda," continua o Garrido como se nem tivesse ouvido a pergunta, coçando o nariz, ostentando a mão esfolada como um emblema. "Havia esta miúda e eu ia jurar que esta era aquela. Tu sabes. A que me ia acalmar, a que me ia tornar mais como tu, amigo."
"Tu sabes que não tenho ninguém."
"Sim, mas tu consegues sozinho. Eu preciso de alguém que me acalme. Tu sabes que eu só quero guerra."
"Sim, só queres problemas. E pelo que vejo, até te tens safado."
"Mas é frustrante, porque..."
"Não estás a escutar". António interrompe. "A conversa é sempre a mesma. E depois estou cá eu para amparar as tuas derrotas. Continuas sem escutar."
"Mas..."
"Mas merda. Cala-te, que os detalhes sobre o que aconteceu não trazem nada de novo. A porra é a mesma. Viste uma miúda. Era gira, ou tinha qualquer coisa acerca do olhar dela que te dava uma falsa promessa que te ias esforçar para ser bonzinho ou leal. Mas a tua natureza é algo comprovado. Querias saltar-lhe em cima, e depois de uma cambalhota ou três, ias largá-la porque estavas farto. Porque o clamor dos sarilhos começa a soar alto, e lá vais tu feito cão atiçado criar problemas. Para quê?"
O Garrido fica tenso, pensativo. Por momentos, observadores diriam que o de vermelho iria esmurrar o de cinzento.
António continua como se nada fosse, como se não fosse a primeira vez, que não é. "Estás encravado, camarada. Eu sei que entre nós, tu és o mais esperto. Por te estares sempre a meter em merda e a ter de sair dela, tiveste de te fazer fino. Mas agora és cicatrizes. És noites mal dormidas. És desilusão."
Garrido engole em seco. "Desilusão para ti?"
"Para quem mais interessa? Eu sei que gostas de dar ares de quem ignora o que os outros pensam, mas tu e eu sabemos que a minha palavra é o que conta. Vejo-te a instituir sonhos e a partir relações e penso que tipo de homem serás tu?"
"Eu sou eu mesmo." Garrido, defensivamente.
"Vai à merda. Todos nós devemos seguir um ideal. Senão somos todos uns animais."
"Mas gostas de estar sozinho?"
António sorri e suspira ao mesmo tempo. "Nem por isso. Mas a alternativa, ficar com alguém pela mera companhia, é vazia."
"Foda-se, amigo! Mas e as necessidades..."
"Foda-se, camarada. As necessidades esperam."
"Sempre foste mais forte que eu, António."
"Não, apenas mais decidido e mais pragmático."
"Aye..." responde o Garrido, um sorriso malicioso a desenhar-se no canto do rosto. "Mas e divertir-te, que tal? Uma farra à maneira? Um nada partilhado entre amigos, ou entre amantes, recheado com gargalhadas e um encanto inocente pelo mundo? Que tal é viver secamente?"
"Não sou eu quem se está a queixar, a dizer que havia uma miúda..." defende-se António.
"Oh, fode-te, amigo! Não te queixas, mas também não celebras. És assim a modos que uma linha contínua pelo tempo, sem história ou novidade. Sem alegria ou tristeza."
"Mau, linguagem. Além do mais, tu é que me chamaste."
"Aye, chamei. Porque precisamos um do outro. Porque me levas ao sítio quando me lixo." constata o Garrido.
"E porque me dás a crença que ainda posso mudar um pouco do mundo, tocar alguém, através das tuas histórias." completa António.
"Tu pensas. Eu sinto." diz o Garrido, baixinho.
"Seria melhor se não estivesse a chover, camarada."
"Aye, mas os se's..."
"De nada valem. Vamos fumar. Arranja-me um."