O Relojoeiro e o Insecto Mecânico Que Ousou Cantar

Começa com um som. Rítmico, certo?

Certo.

Escuto o zumbido com as orelhas. Há que percebê-lo. É o quê?

Mais um bicho? Não pode...

Depressa! Mãos à obra! Mãos na obra! Lápis seguro na orelha esquerda? Não! Pegar no lápis e começar o traço, ora! Óculos ajustados, olhos postos na folha... E começar com os contornos. Hmmm... Suaves ao início. Calma. Mas com palavras, percebem? Sempre com palavras. Usá-las como se fossem matéria. Aquela donde origina toda a vida. A substância secreta. Ir além dos contornos, das sombras.

Tenho de continuar.

Pegar nas ferramentas. Começar a construção. Dar-lhe ossos e dar-lhe músculos e dar-lhe órgãos e dar-lhe engrenagens para o que faltar. Sim! Será genial quando afinado! Aha!

Dar-lhe um bico.

Para que a cabeça seja também como uma flecha. Terá que ser... O resto do corpo tem de permitir projeção. Sim. Aerodinâmica ininterrupta! Uma ativação e lá terá de ir sem hesitações. Disparado aos corações de outros para ouvi-los bater. Para nesses corações morar e desses corações se alimentar...

Crescer!

Perceber o sentimento. Perceber o propósito. Mas para isso tem de comover! Um olhar! Precisa dum olhar que comova. Ainda que falso, que comova! E de ouvidos! Para escutar como alguém é algo próprio, único! Para que aprenda a ser mais que um inseto de um pobre relojoeiro. Sim! De se completar com as vozes de outros e regressar até mim quando estiver...

Grande.

Finalmente. Olhar-lhe nos olhos. Um olhar verdadeiro que me comova. Reparem! Ver lá uma alma sorrir ao seu pai. Outras almas, de outros corações. O que o meu parasita me trouxe de volta e faz agora parte de só de si. Aprendeu! Outras almas são agora a alma dele. Ele que agora se anima. Que se supera. Que finalmente canta! A voz! Tem uma voz! Que me transcende...

Maior que o criador!

E depois carregar no interruptor. Desligar os sistemas. Matá-lo. Acabar com a música. A música tem de morrer, tem de morrer! Senão não posso fazer mais relógios.

Medir o tempo.

Preciso de sossego para construir os aparelhos de medir o tempo.

Perdoem-me este excesso para que escute o zumbido dum aparelho muito afinado.