zero zero nove

Mais água. Mais gotas. Mirra calcava cuidadosamente a terra molhada, enquanto saía da sua tenda, ainda a olhar para dentro dela. A luz continuava estranha, apesar de a mesma. Surreal. O bruto aparentemente dormia, um princípio de sorriso no canto da boca. Mas ela sabia que não havia como retaliar.

Essa é a verdadeira extensão do medo, não é? Quando o tirano que nos aprisiona sabe do quão absoluta é a nossa impotência. Deixa de haver desespero, porque não há esperança que o alimente. É tudo claro. Era tudo absolutamente claro na mente de Mirra.

Ele escutaria qualquer avanço dela. A sua natureza selvagem demonstrava-o. Transparecia uma consciência daquilo que o rodeava que ia contra o seu ar mais básico e folião.

Ainda atordoada, virou-se de novo para o exterior. Perdeu minutos a fitar o firmamento na entrada da tenda. Apesar da chuva no final da tarde, o céu começava a abrir, com as nuvens a darem caminho a um luar duma Lua fria e redonda. A paisagem estava serena. Os choros daqueles que a acompanhavam em viagem tinham-se reduzido a suspiros em sonos difíceis, ou a meros olhares vagos em mentes ausentes.

O acampamento estava montado ao pé dum afluente do rio que corria para Grande-Gothlam-no-Oriente. Pouco fundo, e sem corrente, não servia para se afogar. O local onde estava aparentava ser plano, ainda que se tratasse na verdade do fundo dum vasto vale com uma inclinação praticamente indetectável em todo o seu redor. Não havia um abismo para onde se atirar.

A vastidão piorava tudo. Sentia-se como uma tartaruga no fundo duma tina de latão. Estava mergulhada em trevas, assombrada por uma luz que apenas evidenciava criaturas que não eram mais homens. Sabia que se corresse, a apanhavam. Sabia que não iria morrer. Sabia que iriam voltar.

Sem escape, fincou os pés descalços na lama. O ar frio da noite gelava-lhe o peito e adormecia-lhe o rosto ainda dorido.

Começou a andar rumo ao riacho. A terra lamacenta passava-lhe por entre os pés.

Recordava a sua terra natal e a sua família. O conforto de uma casa de nobres. A segurança proporcionada por guardas pagos e paredes duras e barras de aço. Sentou-se na margem, pés enfiados na água gelada. Do aconchego da sua ama. De como escrever "odeio-te pai, parto agora para que não me controles mais" era uma péssima despedida. Mastigava tudo isso e tudo isso a feria ainda mais. A fazia envergonhar-se. A fazia esquecer-se do frio que lhe mordia os ossos.

Não muito distante, um rapaz sujo observava-a curioso. Era a segunda vez naquela noite. Não lhe parecia uma lebre.

008
010