Para Atravessar o Rio

É Inverno, e a neve cobre tudo. Para chegar a casa decidiste atravessar o rio que julgavas gelado, em alternativa a dares uma grande volta e usar a ponte. Devia ser seguro, devia estar intacto. Decidiste fazê-lo sozinho, para não te atrasares com os outros, com as suas bagagens e as suas hesitações. Para não percorreres um caminho que já é conhecido. Um risco calculado, e se tivermos em conta que o texto começou agora, um risco que vai correr mal. Porque é esta a tua natureza: Estragar.

Enquanto caminhas para a margem nevada e pontuada por árvores nuas de folhas, escutas algo diferente. No horizonte nasceu um ruído que te perturba. Não, não é o correr da água, o uivar do vento, ou o ribombar da trovoada. É algo harmonioso e mecânico, maquinal, mas que corre de modo dissonante aos sons da natureza. É aí que páras, e fechas os olhos, e escutas, e tentas perceber. Voltas a abri-los, a focar a distância, identificar de onde vem. Viras-te ao início lentamente, depois mais depressa, mas é fútil. Rodeia-te. Não existe um ponto onde o sintas mais forte. Mais assustador que isso, não encontras o ponto onde o percebas mais fraco.

É homogéneo. Denso. Completo. Invulnerável. Feito de engrenagens e válvulas e pistões. Cerca-te. É uma harmonia que começa a desmontar-te por dentro. Soluças uma vez e ficas meditativo. Respiras com dificuldade.
O tempo passa e ao início não te apercebes. A harmonia é suportada num crescendo que se vai moldando ao teu desejo. Procuras percebê-la, saber de onde vem e porque te fascina e te aterroriza, e então dás um passo numa direção aleatória. Demasiado cedo.

Apercebes-te que afinal estás em cima de gelo fino. Quando o teu pé toca no chão, ouves estalar. O solo cede. No teu peito o ar pára. Susténs a respiração, costelas trancadas num temor que te afundes de uma só vez. A desconstrução que se desenrola na tua alma borbulha e sobe para a tua mente. Aí não perde tempo, acelera. Explode. Explode pela tua cabeça fora e espalha-se na superfície do rio gélido. As tuas ideias e os teus sentimentos são agora pedaços cravados no gelo, tornando-o mais instável. Fraturado.

Estás a ser observado. Na margem estão aqueles que amas. Esperam que te movas, que saibas dar os passos certos para voltares para onde é seguro. Queres atirar-te para o chão e apanhar os cacos que estavam dentro de ti e voltar a enfiá-los na cabeça e a voltar a ser são o suficiente para reconhecer o caminho. Mas não os percebes. Têm orientações, geometrias que não compreendes. São um puzzle desconexo cujas peças por vezes entoam a harmonia que ainda escutas. Outras vezes refletem os rostos daqueles na margem. E mesmo que te atirasses na tentativa de os apanhar de volta, desconfias que te afundasses de uma só vez, entre placas de gelo estalado, num rio cuja corrente tens a certeza ser demasiado forte para ti.

A harmonia mecânica que te cerca não pára. Preenche cada fissura tua, tornando-te mais pesado, e portanto fazendo com que o gelo estale mais. O terror aumenta. Vais-te afogar com a corrente, na vã esperança que te leve até à margem? A uma margem? Ou vais arriscar caminhar no gelo, com a suspeita que talvez o resultado seja o mesmo? Ou, por outro lado, vais deixar-te estar a olhar os bocados da tua sanidade espalhados no branco à tua volta, e tentar percebê-los? Tentar encontrar a chave da tua salvação naquilo que foste e que invariavelmente irá ditar quem virás a ser, resolvas-te ou não.