zero um zero
"Não tens frio?"
A voz de Rolf soava estridente e deslocada. Violava o silêncio instalado no vale, e que servia como manto para Mirra. Ela continuou com os pés enfiados na água, ar pálido, cabelos vermelhos a ocultarem-lhe a face. O frio estava-lhe ausente da mente.
"Hey! Não tens frio?" voltou a perguntar.
O rapaz erguia-se a pouco e pouco dos rochedos onde estava sentado. Agarrou a lança, subiu as pedras, para ver melhor. Para se colocar mais alto. Para assegurar a vantagem do terreno. Lembrava-se dos ensinamentos de Ghunn.
Se o ouvia e o ignorava, ou se o simplesmente ignorava, Mirra não dava sinais. A sua postura era dura, pontuada por farrapos, sangue seco e hematomas.
Rolf agarrava a lança com mais força, e adotava uma postura que lhe permitia desferir um golpe, enquanto se colocava à defesa, tal como havia sido ensinado. Pé ante pé, aproximou-se. Fez questão de calcar a lama com vontade e fazer-se ouvido.
"Oh ruiva, não tens frio?" perguntava uma vez mais enquanto se aproximava. Quando estava a dois metros dela, sentou-se também na margem, com a ponta da lança em riste, olhar curioso e desconfiado.
Como ela, enfiou um pé na água, mas logo o tirou, atirando pequenos salpicos enquanto o fazia. Muito fria, acha. Quase gelada. Olha espantado para ela, e interroga-se como é que tinha tal resistência. Como é que era capaz de ter os pés enfiados numa água tão gelada, e semi-nua! Tentou de novo. Um calafrio explodiu-lhe no fundo das costas, derramando frio pela coluna acima. Fincou os dentes. Insistiu.
"Um de nós prevalece sempre." eram as palavras de Ghunn. "Além de qualquer animal. Além de qualquer mulher. Além de qualquer outro homem de qualquer outra tribo. Um de nós prevalece sempre, com os seus irmãos." disse, murmurando. Procurando força.
Retirou o pé, mais depressa, fazendo pequenas ondas espalharem-se pelo riacho, desfeitas instantaneamente pela corrente. Soprou em frustração. Já não sentia o pé. Olhou Mirra, mais perplexo ainda. Baixou a lança, e encostou uma mão no ombro despido dela. Tinha a temperatura do riacho. Apetecia-lhe tirar a mão, mas insistiu. Com os olhos fechados, soprou uma vez mais, insistiu. Os caracóis ruivos dela agitaram-se com o pequeno sopro, e então mexeu-se. Rolf abria os olhos, e Mirra virava o rosto para ele, os cabelos afastando-se com esse movimento. Revelaram uma cara deformada por violência. Olhos vagos, lábios roxos de frio, uma mapa de brutalidade no rosto embateram na jovem inocência de Rolf, rompendo-a e implantando-lhe um profundo desdém por tudo o que acabara de acontecer. Rolf sentia-se sujo, ainda que duma maneira diferente de como a que estava até agora.
Continuou a segurar-lhe o ombro, já não sentia a mão.
009
A voz de Rolf soava estridente e deslocada. Violava o silêncio instalado no vale, e que servia como manto para Mirra. Ela continuou com os pés enfiados na água, ar pálido, cabelos vermelhos a ocultarem-lhe a face. O frio estava-lhe ausente da mente.
"Hey! Não tens frio?" voltou a perguntar.
O rapaz erguia-se a pouco e pouco dos rochedos onde estava sentado. Agarrou a lança, subiu as pedras, para ver melhor. Para se colocar mais alto. Para assegurar a vantagem do terreno. Lembrava-se dos ensinamentos de Ghunn.
Se o ouvia e o ignorava, ou se o simplesmente ignorava, Mirra não dava sinais. A sua postura era dura, pontuada por farrapos, sangue seco e hematomas.
Rolf agarrava a lança com mais força, e adotava uma postura que lhe permitia desferir um golpe, enquanto se colocava à defesa, tal como havia sido ensinado. Pé ante pé, aproximou-se. Fez questão de calcar a lama com vontade e fazer-se ouvido.
"Oh ruiva, não tens frio?" perguntava uma vez mais enquanto se aproximava. Quando estava a dois metros dela, sentou-se também na margem, com a ponta da lança em riste, olhar curioso e desconfiado.
Como ela, enfiou um pé na água, mas logo o tirou, atirando pequenos salpicos enquanto o fazia. Muito fria, acha. Quase gelada. Olha espantado para ela, e interroga-se como é que tinha tal resistência. Como é que era capaz de ter os pés enfiados numa água tão gelada, e semi-nua! Tentou de novo. Um calafrio explodiu-lhe no fundo das costas, derramando frio pela coluna acima. Fincou os dentes. Insistiu.
"Um de nós prevalece sempre." eram as palavras de Ghunn. "Além de qualquer animal. Além de qualquer mulher. Além de qualquer outro homem de qualquer outra tribo. Um de nós prevalece sempre, com os seus irmãos." disse, murmurando. Procurando força.
Retirou o pé, mais depressa, fazendo pequenas ondas espalharem-se pelo riacho, desfeitas instantaneamente pela corrente. Soprou em frustração. Já não sentia o pé. Olhou Mirra, mais perplexo ainda. Baixou a lança, e encostou uma mão no ombro despido dela. Tinha a temperatura do riacho. Apetecia-lhe tirar a mão, mas insistiu. Com os olhos fechados, soprou uma vez mais, insistiu. Os caracóis ruivos dela agitaram-se com o pequeno sopro, e então mexeu-se. Rolf abria os olhos, e Mirra virava o rosto para ele, os cabelos afastando-se com esse movimento. Revelaram uma cara deformada por violência. Olhos vagos, lábios roxos de frio, uma mapa de brutalidade no rosto embateram na jovem inocência de Rolf, rompendo-a e implantando-lhe um profundo desdém por tudo o que acabara de acontecer. Rolf sentia-se sujo, ainda que duma maneira diferente de como a que estava até agora.
Continuou a segurar-lhe o ombro, já não sentia a mão.
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