Estupidez à Portuguesa

Odeio isto. Odeio-te a ti. Odeio aquilo que és. Aquilo que representas. Aquilo que me fizeste.
Como se perdoar fosse fácil.

Como se a vida fosse simples. Nunca foi. Sempre fui uma pessoa que trabalha como as outras. Ri como as outras. Chora como toda a gente.

E tudo isto porque não vias mais que a tua necessidade de preencher espaço. Coisa de homem com H grande, hein? Preencher espaço… Forçar para qualquer buraco…

O meu carro não era particularmente rápido, talvez fosse como os gajos ou as gajas que preferes. Os gajos ou as gajas que sujas e abandonas, marcas e esqueces.

Mas, o meu carrito sempre me levou onde quis chegar. Devagar, fácil, com música simples no rádio. Mas tudo isso esvaneceu naquela vez em que nos cruzámos.

Não sei se impaciente, se simplesmente louco. Certamente próximo, perigoso. Demasiado próximo, com fatal escrito por todo lado – no vidro por quebrar, na madeira por rachar, no óleo por verter, no metal por dobrar.

E de facto dobrou. Foi a primeira marca do nosso contacto. O som abafado da chapa, a contorcer-se. A conhecer-se, a tornar-se íntima. Da tua chapa. Eventualmente da minha carne, do meu sangue, das minhas vísceras. Eu sabia-o. Eu sabia breve o momento em que estarias dentro de mim, a quebrar-me.

Espantaste-me e assustaste-me, perdi o controlo. Direita, depois esquerda, depois direita. Ou seria baixo, depois cima, depois baixo. Ou tudo isso? Nada?

Depois um raspar estridente. Agora completo descontrolo. Tudo mudo, tudo abafado na distância.

Segmento negro. Segmento branco. Negro, branco, negro. Castanho. Azul. Castanho. Azul. Negro. Sempre negro. Demasiado escuro.

Não era veloz o meu carro, mas, veloz quanto baste para rodopiar ao ponto das forças serem suficientes, bem mais que suficientes para metal carne sangue impacto ossos fragmentos. Uma dor tão eterna cujo único escape era eu deixar de sentir... Sentir os pés, os joelhos, as coxas, o rabo, o sexo.

Deixar de andar, de correr, de saltar, de urinar sem ajuda. De cagar sem ajuda. De nunca mais poder foder.

Mas tu fodeste-me bem obrigado. Bateste com a frente, abrandaste e foste à berma. Simples, coisa de hematomas. Eu fui à valeta, capotei. Acabei com a espinha desfeita.

E agora isto é a única coisa que conduzo. É uma cadeira de rodas, estás a ver? Não é veloz. Mas, leva-me onde quero. Se não quiser andar, ou correr, ou saltar. Se não quiser aliviar-me. Se não quiser prazer.
E da mesma forma que estou para sempre nela, tenho todo este ódio para sempre em mim. Porque ainda andas e saltas, ainda mijas, ainda fodes, se calhar ainda mais inocentes que eu. Que sujas e abandonas, como a mim. Que marcas e esqueces. Como a mim.

Sou a merda duma vítima. Nunca quis isto. Nunca quis mais que a minha vida em que era uma pessoa que trabalhava como as outras, ria como as outras, chorava como toda a gente. E não me venham com merdas, porque não trabalho como as outras pessoas, põem-me, ou tiram-me, obstáculos conforme me encaram numa cadeira de rodas. Porque não rio como as outras pessoas, que ainda são vivos aqueles segundos em que mais de metade de mim morreu. E não choro como toda a gente porque quero o direito à minha tragédia, ao meu lamento, à minha comiseração, porque toda a gente ainda acredita numa qualquer noção de justiça cósmica. Não, as coisas não vão melhorar, não vai correr tudo bem.

Fico então aqui neste escuro canto da vida, numa cadeira de rodas a odiar-te. A odiar quem tem pena. A odiar quem não tem. A odiar-me antes de tudo. A odiar-me depois de tudo.

Simplesmente longe de tudo, como se perdoar fosse fácil. Odeio isto!