O Aprendiz - I



Já não é a primeira vez que sinto este choque. Não é a primeira vez que o meu peito se assemelha a uma praia, onde sinto o embater das ondas…

- Não!

A luz diminui, mortiça, tudo à minha volta não mais que névoa e cheiro de mar. De água. De ínfimas gotas, invisíveis, projectando-se em todas as dimensões. Tempo. Espaço. E eu.

Eu, estático, a afastar uma porta pesada de madeira trabalhada, a ver um longo corredor de mármore, um chão em xadrez preto e branco, ladeado por colunas de marfim, cravadas com figuras de seres alados e de homens santos.

Ao fundo o cantar mudo, gaivotas?, e bem perto, o estrondoso rebentar das ondas, ensurdecedor, o silêncio ensurdecedor como o ventre de um trovão que rasga o céu…

- Não pode ser!

Dois passos para dentro.

Desde que o teu rosto alvo me surgiu em vida, ou seriam apenas sonhos, o meu dia a dia foi perdendo simplicidade, paladar, aroma. Os rostos felizes nas festas dos solstícios, os aconchegares de cobertores à noite, o abraço apertado dele quando regressava do mar com cheiro de sal, o sabor adocicado da canela do topo dos bolos dela, a mãos suaves deles a segurar as minhas, enquanto caminhávamos na rebentação, os carrosséis que me faziam enquanto eu pequeno, voltas e mais voltas e mais voltas e …

- Mais…

Feliz. Muito mais feliz. Muito menos sabedor. Muito menos conhecedor. Os bolos, as festas, os mares, os abraços, os passeios…

Três passos mais perto, mais húmido.

Simples. Nada de complicado. Era feliz sem o saber. Era feliz por isso mesmo, por não compreender, por não entender o…

- Animal…

A cambada de…

- Animais!

Que todos vocês agora reconheço, dos quais ou das quais tu a maior das bestas, porque nunca cheguei a perceber realmente o que vocês eram se homens se mulheres mas agora sei-o, sei-o.

- JÁ SEI, OUVISTE MONSTRO?!

E depois os ecos das minhas palavras encharcadas em repulsa.

Então viraste essas tuas janelas azuis, nesse teu cume de dois metros, desconhecendo a raiva que silenciosamente jorrava de mim, se impregnava nas paredes, nos vitrais, nos candelabros, nos tecidos. Ira palpável, com aroma de Inverno e forma de chuva.

O mármore do chão espelhando os topos dos nossos perfis, o teu negro, o meu ora branco, ora negro, rocha que escorre a fúria que me acompanha, me segue, à medida que os meus pés a percorrem.

Sempre te achei antigo ou antiga, é sempre confuso o vosso género, antigo como as montanhas do Norte, traidor tortuoso, como os caminhos nas montanhas geladas, que tantas vezes me levaram a bem perto da morte, sempre sem saber o quão perto caminhava dum fim sem verdade.

Mas tu parecias morar na eternidade, tal como o teu olhar cristalino azul, que me lembrava a sua última morada, onde eles pacientemente repousavam, me aguardavam...

Essas duas esferas confortavam-me, prendiam-me cá, aqui, longe das ondas, das gaivotas?, por me dizerem que ainda não era tempo, por me implorarem que ficasse por me atirar de um parapeito para o nada.

Como ansiava eu a vertigem, conhecer a pancada dura de ossos no chão, carne no chão, vida abruptamente terminada. Simples.

Confortava-me saber que havias tu, e outros, ou outras, invisíveis feras que como tu que nos guardavam, nos aconchegavam à noite, nos deixavam passear junto ao mar e comer bolos com canela, ter carrosséis, voltas e mais voltas e…

- Mais uma vez…

Passo a passo, levando o meu tempo, colocando-nos mais perto da meia-luz dos vitrais que descrevem a história do Anjo e do Homem, das meias verdades sobre como o Anjo enganou o Homem. Mais perto do confronto.

O destino voltou a mostrar-me aquilo que sempre soube sobre a minha natureza. E sobre a tua.


(continua...)