O Aprendiz - VI

(parte anterior)


Volto a rodeá-lo lentamente, confiante, mais calmo, decidido a fazê-lo compreender.

- Não estás a escutar. Os anos no Claustro de Marfim. Dias passados a balbuciar termos de uma língua morta. Os gestos. O entorpecimento do corpo a favor do enaltecimento da mente, para que pudesse controlar os cristais, a energia dos minerais… A Deslocação. A Paralisação. A Cura. A Dor. A Coragem. O Medo. Queriam criar mais um agente da Conspiração. Depois as montanhas geladas. Como eu as odiava. Sempre a forçar o espírito, a testá-lo, a obrigar-nos a abrir caminho na neve deslocando-a com não mais que palavras em livros esquecidos e gestos, quase danças, a procurar calor imaginando-o. Constantemente a pressionar. Para nos manter vivos. Tudo isso. E eu que não queria mais que a minha vida longe de tudo isso. A minha vida quando era abraços, bolos e carrosséis. Não treinar para sobreviver. A minha vida orientada para mentir. Para enganar. Para controlar.

- Estou a ver que não encontraste as razões para eu te ter endurecido. Estou a ver que não reconheces o facto de que se não fosse por isso, este momento jamais teria chegado.

- De facto. Não teria chegado. Continuaria feliz. Morreria feliz. Porque a vossa conspiração é uma de séculos. Gerações inteiras viveram e morreram sem saber. Vida dura, e difícil. Mas feliz, ignorante.

- E porque não continuar tudo isso? Mas mais rico. Mais poderoso. Superior!

- Porque quem me ensinou os meus valores não foste tu.

- Desvantagens de te ter acolhido já tão avançado na idade. Passamos logo para o treino das tuas capacidades. Nunca foi um problema com os outros. O fascínio pelo poder sempre mudou as suas atitudes, tornou-os subservientes, gratos. Mas talvez tenha sido um erro. Talvez devêssemos ter empregue mais tempo a assegurar que te manterias do nosso lado. Mas então porquê? O poder não te atrai?

- Oh… Agora atrai. E muito.

- Então porquê tudo isto?

- Porque sei-nos, Homens, mais que os Anjos. Porque tudo isto que tenho em mim, toda esta capacidade, pertence a um Homem, não a um Anjo, e como tal é meu dever libertar o meu povo. Esta era tem um final, e serei eu quem o vai anunciar.

- Achas mesmo que consegues fazer-nos frente? Seres milenares de poderes sem igual?

- Não será preciso fazer-vos frente. Pelo menos por uns tempos, tudo irá correr de forma normal.

- Normal… Então não irei morrer? Pelas tuas mãos?

- Não irás morrer. Não pelas minhas mãos. Ou pelas mãos daqueles que comando.

- Não?

Tu mais calmo, ainda tenso, atento ao que eu possa fazer, mas mais relaxado, mais aberto à conversa.

- O conceito de compaixão foi algo que vocês nos ensinaram. Talvez para nos manter moles, sobretudo para com os da vossa espécie. Mas eu acho que a compaixão tem outras virtudes.

- Tais como?

- Depreendo que faças tantas perguntas por estares surpreso. Não é costume.

- Queres um refém.

- Perto. Um aliado.

- Pff… Disparate…

- Reconsidera.

- Estou a ouvir. Sempre estive.

- Eu sei que nenhum Anjo se acha de menor valor que a sua raça. Isso é coisa de humano. Além disso, há outras benesses.

- A magite. Sim, são os Humanos quem irão eventualmente apoderar-se da Cordilheira Gelada.

- As tuas capacidades têm tanto para aumentar. E enquanto traidor da vossa raça…

- Seria um ícone da libertação da vossa.

- Ofereço-te refúgio dos teus. Além do mais, eles jamais ficarão em paz contigo sabendo que os seus planos foram gorados pela tua falta de cuidado. Por dizeres que sempre estiveste a ouvir. E por este momento demonstrar o contrário.

- Eu nunca tive falta de cuidado. Ou deixei de ouvir…

- Enganas-te! Foste tu quem criou esta situação.

- Algo então me escapa.

- Obviamente. Mas não te vou explicar como caíste. Considera o facto de me teres vigiado de perto como uma falha. Afinal, foste mais atento às minhas acções, esqueceste as vozes dos que te rodeavam. Tudo isto poderia ter sido evitado, se escutasses. E eles jamais irão tolerar que um dos seus tenha perdido para um de raça inferior. Eu ofereço-te poder. Além da tua vida.

- Então um aliado?



(última parte)