O Aprendiz - V
Nunca irei saber aquilo que te corre a alma, se é que tens alguma coisa dessa espécie em ti, mas nunca irei esquecer a tua expressão à medida que reparas na água que nos cerca. A água que se manifesta como aquilo que mora cá dentro se manifesta, na iminência da ebulição. Insidiosa, rápida, lenta, subindo, descendo, as paredes, as coisas, tudo coberto por água, como se omnipresente. Um manto, uma superfície que nos cerca, isolando-te de qualquer poder. Uma superfície que se contrai, ganha ângulo, uma redoma, fecha-se, um refúgio, e nada mais que nós numa esfera perfeita, aquosa, efervescente, negando-te qualquer aptidão mágica.
- Eu soube sempre da tua paranóia, “mestre”, soube sempre que jamais havias de ter os cristais demasiado próximos de ti. Olhos azuis sequiosos, conformados: “Apenas numa emergência…”
- E daí apareceres de surpresa. Ensinei-te bem.
- Vantagens de te conhecer melhor. Mas irrelevante agora. Não te estou agradecido pelo que me passaste. Nunca te tivesse conhecido, e a minha vida seria bem mais simples, mais fácil…
- Diz antes difícil.
- Ahahah! Porquê? Agora é que tem sido fácil? Desde que os teus representantes surgiram na aldeia, procurando talentos, e me encontraram na areia no meio do mar, junto às rochas do recife, calhaus e água revolvendo em meu redor, num turbilhão, ainda não sei se apenas emocional… - Seria para sempre maré vaza… - A populaça espantada, assustada. E os teus Emissários Brancos assegurando toda a gente que eu era um Escolhido do Criador, um futuro Emissário. Os teus homens de branco caminhando por entre a água, pela falha que lhes oferecia um caminho de areia, pedrinhas e estrelas-do-mar, até mim, até mim catatónico, paralisado, não percebendo que… - A culpa era minha, que eu era a maré vaza… - Que tudo aquilo que estava acontecer… Eu não compreendia. Mas sabia desde aquele instante que queria estar só, queria ser deixado em paz, queria passar despercebido, continuar com a vida difícil (mas que continua, como o rio para o mar)…
- Como se manter uma cratera de cem palmos de fundo e cinco mil de diâmetro na costa durante dois dias fosse algo que passasse despercebido. Quem queres enganar?
- Enganar? Mas realmente essa É a vossa Natureza. Não percebem. Não conhecem mais que a mentira? Eu queria que se esquecessem. Eu queria não ser um Escolhido, um Emissário. Mas não. Tinham que me resgatar, tinham que me ensinar, enfiar na cidade capital rodeado de “Este tem futuro…”, “Este será um dia, quem sabe, supra-sacerdote…”, “Potencial rapaz, tu tens potencial”. E eu nunca quis potencial, percebes? Nunca quis um futuro outro que o de ir pescar e voltar para alguém que quisesse ser abraçado, voltar a sentir o seu calor e o sabor de bolos de canela, fazer carrosséis…
Começo a sentir-me mais seguro, a rodear-te devagarinho, os teus olhos acompanhando os meus lábios, as minhas mãos, esperando o meu golpe final, tu continuando:
- Sim, ambição foi algo que te esteve sempre em falta, por mais que eu tentasse corrigir. Tentei fazer com que soubesses…
- Eu nunca quis saber! Eu quis sempre ser ignorante, desconhecer a verdade. Forçaram a Luz em mim, forçaram-me para o Patriarcado da Luz.
Eu agora estacado, punhos cerrados. A ira tão difícil de segurar.
- Para que conhecesses o quanto poderias trazer…
- Mentiras. Julgas que a tua voz de cobra ainda tem esse efeito em mim? Trazer o quê? Discórdia? Desgosto fatal às princesas? Loucura aos nobres? Infortúnio a amigos? Eu já vi o que os teus Emissários Brancos são capazes, com as suas vozes portentosas e enlouquecedoras.
- Pois eles não renunciaram ao poder que vos passamos. Pelo contrário, souberam ascender. Não me digas que tu o irás fazer...
- Demasiado tarde... O poder que falas faz agora parte de mim. Já não existo eu e a magite. Não há divisão, apenas harmonização entre mente, corpo e cristais. Já não há volta atrás.
- E como conseguiste chegar a esse ponto?
- Tu sempre me disseste que o que distinguia o bom do excelente…
- Era o tamanho das passadas…
- E eu não dei passadas. Eu saltei.
- Graças a mim?
- Correcto.
- Mas como?
- Não consegues adivinhar. Nem conseguirás. Digamos que foi a partir do instante que me apercebi da Conspiração que as coisas mudaram.
- Cresceste.
- Ao ponto de te inutilizar. Fui ao tal ponto do qual qualquer homem que deseje poder não consegue regressar…
- Concordo. Foram muitos os que enviámos para além desse ponto. Mas nunca nenhum cresceu dessa forma quando lá chegou. Recebeste ajuda.
J. Ele não pode saber.
- As princesas, os nobres, os amigos, tudo pessoas quebradas ao ponto de deixarem de serem quem eram, amostras do passado, mesmo quando parte do que eram residia no coração de outros. Tiraste-me tudo. Tiraste os outros. Fiquei apenas com os teus olhos, sempre azuis, sempre vazios, como a maré.
J. Mas não ma vais tirar.
- Tirei o quê? Tu nunca tiveste nada. Os teus pais…
- Pouco pode haver de sagrado, mas danado serei se deixo que conspurques a minha única recordação de tranquilidade. Por favor não voltes a referir o meu passado.
- Ou então?
- Sim. Ou então.
- …
- Já vi que começas a perceber a minha posição em relação a ti. Onde reside o degrau, e quem é que está nele. Vocês sempre foram mais altos, mas desta vez, nós seremos maiores.
- E vais então renegar tudo aquilo que te ensinei. Rebelar-te contra nós.
(continua)