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Showing posts from October, 2012

A Dadora

Que trazes tu na tua faísca? Fechas o isqueiro e puxas de mais uma baforada do teu cigarro. Tens ansiedade escrita em lábios finos, que se esticam e se descoloram enquanto a tensão se aninha nos teus ombros. Olhas mais uma vez o teu relógio de pulso, ansiosa que o dos minutos chegue ao sítio devido, mas a merda do relógio não tem ponteiros.

zero zero seis

A festa seguia animada. No céu da noite não se via uma nuvem, e não havia Lua. As grandes piras ardiam intensamente, ofuscando assim as estrelas e saturando o ar com um cheiro de alce e especiarias a cozinhar na brasa. No planalto onde o acampamento estava montado, aquela festa era o único ponto luminoso da Terra. Crudes instrumentos de osso eram soprados. Os bárbaros da tribo chamavam-lhes Ossos de Kron, em homenagem a um dos seus antigos, que lhes mostrou que os instrumentos dos vigias, com mais dois ou três furos, podiam produzir música além dos aterradores ululares de alarme. Tinham também alguns tambores feitos de peles de animais e de homens, que produziam o ritmo onde assentavam as melodias dos Ossos, e de uma outra coisa. Uma nova coisa. A música carregava um detalhe, ainda escutado por poucos. O som de uma harpa.

Um segundo

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O tempo de uma vida parece decompor-se em dois tipos. Um primeiro, de características longas e aborrecidas e se representado como uma série de linhas, teria poucas curvas, todas constantes em direção. Um segundo, interrompe o primeiro. Surge como uma explosão, em que se descobrem coisas que revelam novas coisas. Nas linhas que o representam desenham-se fractais.

zero zero cinco

Era o primeiro sorriso de Brunn naquele dia. Tinha acabado de entrar. Ela permanecia na tenda, deitada e enfiada num pesado cobertor de peles de lobo. Havia sido uma prenda de Brunn, eram os dois mais novos, nove meses mais novos. Lobos caçados em noites enquanto vigia, em tempos que não era mais que um mero novato nas mãos do seu tio, Brunn defendia a aldeia, com coragem e arco certeiro na escuridão. Vê-la embrulhada no produto de tantas noites de receio e adrenalina, de trabalho limpo, importante, preenchia-o. Sentia-se protetor de tudo o que importava agora dentro da tenda. Sim, era o primeiro sorriso dele nesse dia.

Update sobre o 100 páginas 2012

A propósito da minha brincadeira, 100 páginas 2012 , um pequeno update. Devo voltar a ela amanhã. Espero. É que depois de escrever o último texto, parece que fiquei com o cérebro sintonizado para cenas completamente diferentes. Continuo a redescobrir o gosto em escrever, e tenho-o feito ainda que não publicando tudo aqui :) Agora, preciso de voltar a descobrir o caminho de volta às estepes.

Humor Negro: Tá porreiro puto, continua assim.

A propósito do espectáculo de stand-up Ruído Negro , que decorreu nestas três últimas noites no Rivoli, n o Porto, escrevi o que abaixo se segue. Inspirado no tema da segunda noite, tentei imaginar um cómico de stand-up diferente, que acabou por ser talvez uma fotocópia retorcida do Pagliacci. Vejam-me tentar ser engraçado, e a falhar redondamente. Deus. Onde está Deus? Ou Jesus? Sabem onde está Jesus? É que eu encontrei Jesus. Irmãos! Irmãs! Eu encontrei Jesus. Querem saber como o fiz? Vou-vos contar uma história. Imaginem um tempo distante. Um tempo em que gola alta e calças de pára-quedista ainda estavam na moda. Aquelas, de bolsos nos lados. Nesse tempo, um tipo (este tipo) é pequenino, e enchem a cabeça pequenina dum tipo pequenino com contos dum tipo grande de barba grande, no Céu.

zero zero quatro

As preparações para o festim iam adiantadas. Três grandes fogueiras, dispersas pelo centro do acampamento aguardavam pelo fogo, fartas em lenha e acendalhas. As tendas tinham todas um aspeto robusto. As bases eram habitualmente feitas com lama seca, ou barro se acampassem junto a um rio. Estavam rodeadas por paredes em peles de animal, a convergirem numa viga de suporte e a dobrarem como telhado. Brunn tinha a maior tenda e era lá que A-Sua-Mulher-de-Agora recuperava. Os outros da tribo aproximavam-se rapidamente dos dois amigos, eufóricos pelo nascimento de E., e de repente, silenciados em espanto com o tamanho do alce abatido por Brunn. Itgard foi o primeiro a quebrar esse silêncio. Costumava sê-lo sempre.

zero zero três

A noite começava a abater-se. E com ela o frio gelado de Norte. Brunn regressava troteando. Preso ao cavalo vinha uma espécie de maca, feita com ramos secos, alguma corda e uma velha manta. Sobre ela, o alce. Morto com uma flecha no coração, algum do seu sangue ainda escorria e depositava-se no pano que segurava o animal. Na neve percorrida por Brunn, notavam-se aqui e ali gotas vermelhas. Um trilho de sangue.

zero zero dois

Aquele dia era diferente. Sentia-o nos ossos. Para a sua tribo era um dia de festa, mas a alegria para ele tinha um sabor corrosivo. Sobretudo quando encharcada em ironia. Brunn o Sisudo. Brunn o Nunca Alegre. Brunn o Grande Caçador. Brunn o Líder. Acordou na alvorada, sentindo na mão o rosto da mãe de E. “Começou” disse-lhe ela, num sussurro. Num sopro só. No azul daqueles olhos morava a certeza do momento. O seu sorriso era definitivo. Ele apenas engoliu em seco.

zero zero um

Segue-se agora um pequeno exercício pessoal. Vou tentar, sem ter pensado muito nisso, escrever uma página por dia, para no final, com alguma sorte e generosidade por parte do leitor, acabar com algo mais que um conto, algo menos que um romance. Uma novela, talvez. Serão 100 páginas no seu todo, escritas durante cerca de 200 dias. Com determinação, deve existir um resultado antes de findar um ano desde que começo. Cá vai. Onde começa uma história? Ou, mais importante que um lugar, uma pessoa. Em quem começa uma história? Começa talvez naquele que viria um dia a perder a inocência, a reclamá-la depois no calor da mais perfeita das mulheres, perfeita para ele, claro, que o ser humano encerra em si um falhanço; e que por um capricho, viria a consumir o mundo inteiro em chamas, por não ter mais como se aquecer.