zero zero dois
Aquele dia
era diferente. Sentia-o nos ossos. Para a sua tribo era um dia de
festa, mas a alegria para ele tinha um sabor corrosivo. Sobretudo
quando encharcada em ironia. Brunn o Sisudo. Brunn o Nunca Alegre.
Brunn o Grande Caçador. Brunn o Líder.
Acordou na
alvorada, sentindo na mão o rosto da mãe de E. “Começou”
disse-lhe ela, num sussurro. Num sopro só. No azul daqueles olhos
morava a certeza do momento. O seu sorriso era definitivo. Ele apenas
engoliu em seco.
Deu-lhe
espaço e foi-se preparando. Chegada a hora de dar à luz, apenas
mulheres podiam participar. Era o dever do pai selar o cavalo e sair
rumo à parte brava da estepe. Tinha de caçar. Era fundamentalmente
simbólico. Trazer uma presa para um festim da tribo no dia do
nascimento do seu filho era um bom presságio.
A galope,
Brunn saiu sozinho. O costume não ditava que o pai fosse caçar sem camaradas. Tal não era esperado, visto tornar tudo tão muito mais
difícil. Mas este era Brunn o Grande Caçador. E era Brunn o Sisudo.
Este era um comportamento familiar a quem conhecia Brunn.
O ar
gelado que fazia então uma criança chorar pela primeira vez rasgava-lhe
a cara. Galopando mais depressa, avistou um pequeno bosque
que antecedia as montanhas de Oeste. Decidiu prender o seu cavalo
junto ao primeiro riacho que avistou, e arriscar a sua sorte nas
profundezas menos iluminadas que se lhe apresentavam. As copas das
árvores ocultavam aquele azul do céu que o arrepiava. E espantava.
E assustava.
Riacho
acima, pouco depois de uma hora a caminhar silenciosamente, avistou
um alce. Grande. Nobre. Sereno. Pastando. O alce apercebeu-se de
Brunn. Apercebeu-se talvez do destino que se aproximava. Mas não o
negou. Continuou indiferente ao Caçador que preparava o seu arco e
puxava duma flecha. Nos olhos negros de Brunn morava a
inevitabilidade do momento.
Inspirou.
O tempo pareceu dilatar-se. Primeira batida de coração. Corda tensa nos dedos, flecha pronta a
sair disparada ao coração do grande mamífero. Mais uma batida de coração. Brunn finalmente
expirou “Nunca meu”.