A Dadora

Que trazes tu na tua faísca?

Fechas o isqueiro e puxas de mais uma baforada do teu cigarro. Tens ansiedade escrita em lábios finos, que se esticam e se descoloram enquanto a tensão se aninha nos teus ombros. Olhas mais uma vez o teu relógio de pulso, ansiosa que o dos minutos chegue ao sítio devido, mas a merda do relógio não tem ponteiros.

És a mulher certa, no sítio errado, de novo. Na mão contrária à do relógio seguras uma mala de couro preto. É cara. É pesada. Desconheces o conteúdo, mas sabe-lo denso. Escuta-lo, soa a engrenagens. Uma bomba? As instruções chegaram-te por carta. Diziam apenas "leva-a até à estação e espera o minuto."
"deve ser gozo" pensaste. "vou morrer" sussurraste. Mas porque porra havias de esperar usando um relógio que não dá horas. E se desse? Que minuto seria? 10:14? 9:55? 1:11? Qual o sítio devido? Estariam todos loucos? Então o tempo avança. Sabes que sim, porque pessoas recomeçam-se na estação. Pessoas embarcam. Pessoas partem. Mas nunca alguém chega. Nunca alguém fica. Apenas recomeçam-se. Pensas no disparate que é estar ali e interrogas-te se não seria a tua vez de partir também. "quero morrer" gemeste.

Puxas outra passa do teu cigarro. Continuas ansiosa. Pensas no teu coração, mecânico, rítmico, a medir o único tempo que te importa. O que te resta. E na mala onde está fechado. A que sabes agora que seguras. Apertas a pega com mais força, os nós do teu punho empalidecem com o esforço. Olhas em vão para fora da estação, para cima, mas no céu não há respostas. Apenas pombos apáticos. Não o conheces ainda, mas sentes falta do lugar que o infinito ocupava e que agora não é mais que uma nuvem de estática no peito. "porra da tecnologia mas que porra", dizes entre dentes cerrados.

Então acontece. Chega finalmente um comboio. "Minuto" escrito na locomotiva. Vazio. A tua mala silencia-se e a estática no teu peito dá lugar a uma vibração constante. Abres as mãos. Toda tu és agora um motor. Embarcas. Estás só. Fechas os olhos e o comboio anima-se. Movimento. Contigo. Partes. À descoberta.

Chego instantes depois, anunciado por pombos, outrora apáticos, agora assustados. Levantam voo do telhado metálico da estação. Vejo que finalmente me abandonaste. Deixaste-me o teu coração, para que eu fosse em diante capaz de medir o tempo que me resta.

O silêncio no cais de embarque é interrompido por um inalar de oxigénio dum pulmão artificial.