zero zero cinco
Era o
primeiro sorriso de Brunn naquele dia. Tinha acabado de entrar. Ela
permanecia na tenda, deitada e enfiada num pesado cobertor de peles de lobo.
Havia sido uma prenda de Brunn, eram os dois mais novos, nove meses
mais novos. Lobos caçados em noites enquanto vigia, em tempos que não
era mais que um mero novato nas mãos do seu tio, Brunn defendia a aldeia, com coragem e arco certeiro na escuridão.
Cá fora, os preparativos continuavam. O burburinho era animado, sobressaindo a voz rouca de Itgard, apressando as escravas para que se mexessem “Tragam mais vinho, idiotas! Ou logo não serei meigo, aha!”
Vê-la
embrulhada no produto de tantas noites de receio e adrenalina, de
trabalho limpo, importante, preenchia-o. Sentia-se protetor de tudo
o que importava agora dentro da tenda. Sim, era o primeiro sorriso dele nesse dia.
Cá fora, os preparativos continuavam. O burburinho era animado, sobressaindo a voz rouca de Itgard, apressando as escravas para que se mexessem “Tragam mais vinho, idiotas! Ou logo não serei meigo, aha!”
Começava
a nascer em Brunn algo com contornos de esperança de que ainda fosse
um bom dia e uma melhor noite. Até que E. fez um som que bebés fazem, fazendo-a agitar-se e reparar que Brunn estava ali, já há
alguns minutos, ao lado da porta, tão quieto e calado quanto uma
pedra.
“Marido!
Não te ouvi chegar”, disse, sorrindo aquele sorriso tão
acolhedor. “Chega aqui, imploro-te.”
Todo e
qualquer traço de alegria no rosto de Brunn dissipou-se, dando lugar
à sua habitual máscara de austeridade. Sentou-se ao lado dela. Punhos cerrados. Disse apenas “Tem as tuas feições. Os teus olhos. Parece forte.
Ainda bem.”
Ela
segurou-lhe a mão, algum transtorno nos lábios, mais tristeza nos
olhos. “Eu sei que me escolheste e me acolheste já com
ele a crescer-me na barriga. Eu sei que isso...”
“Trouxe-lhe
um grande alce. Nada lhe faltará. É um bom presságio”,
interrompe.
“Mas,
eu...”
“Nada.
Lhe faltará.”
Instalou-se
um silêncio que abafou tudo. Abafou o burburinho fora da tenda.
Abafou as tonterias de Itgard. Abafou os ruídos da vida nas estepes.
Abafou o próprio silêncio do Céu. Era absoluto. Ficam assim
durante alguns momentos, a olharem-se intensamente.
“Ainda
me lembro de quando te vi pela primeira vez”, começou Brunn,
quebrando o desconforto, preparando um outro, mais afiado.
" Vocês regressavam da colheita, os nossos guerreiros veteranos, ao lado dos
seus cavalos, com os espólios da tua aldeia. Tu e as tuas
acorrentadas, maridos, irmãos, pais, amigos, todos mortos. Vocês cobertas
em lama e sangue seco. Mas os teus olhos. Nunca tinha visto nada
igual.” Sorriu uma segunda vez. Malicioso.
Ela tentou retribuir, esboçou
um sorriso forçado. Ainda sentia a marca dos grilhões nos pulsos
macerados. Ainda sentia o bafo quente na nuca de homens que lhe
diziam para se apressar, que a empurravam atrás de lanças que lhe
rompiam as roupas e lhe feriam as costas. Ainda ouvia o lamuriar e o
choro das suas irmãs e das suas amigas, enquanto um jovem ruivo as agarrava e as
apalpava e as lambia e lhes prometia a noite da vida delas, a noite
da vida delas quando já não iam haver mais noites, apenas um longo
torpor, dias de indiferença enquanto troféus de mais uma colheita
de bárbaros das estepes.