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Segue-se agora um pequeno exercício pessoal. Vou tentar, sem ter pensado muito nisso, escrever uma página por dia, para no final, com alguma sorte e generosidade por parte do leitor, acabar com algo mais que um conto, algo menos que um romance. Uma novela, talvez. Serão 100 páginas no seu todo, escritas durante cerca de 200 dias. Com determinação, deve existir um resultado antes de findar um ano desde que começo.

Cá vai.

Onde começa uma história? Ou, mais importante que um lugar, uma pessoa. Em quem começa uma história? Começa talvez naquele que viria um dia a perder a inocência, a reclamá-la depois no calor da mais perfeita das mulheres, perfeita para ele, claro, que o ser humano encerra em si um falhanço; e que por um capricho, viria a consumir o mundo inteiro em chamas, por não ter mais como se aquecer.


O nosso protagonista chama-se E., e tudo começa com frio. E. nasceu nas estepes, longe daquilo que conhecemos como civilização, num tempo que se disse mais civilizado que o actual, ainda que menos avançado.

Por estar tão longe do burburinho mecanizado de vidas mais refinadas, pode-se dizer que E. nasceu mais puro que o resto do Mundo. Aliás, E. trazia rasgados na cara dois olhos dum azul céu. E não dum céu qualquer. O céu limpo de uma manhã nas estepes. Livre de nuvens, apenas aquele azul interminável. E eram olhos curiosos. Até para um bebé eram particularmente agitados. Reagiam a quaisquer sombras, porque E. ainda não sabia distinguir mais que a sombra, e pouco tempo depois de ter nascido, já iam de encontro a ruídos, porque E. ainda não sabia distinguir mais que o ruído.

Quando nasceu, toda a aldeia celebrou. A chegada duma criança era sempre motivo de grande celebração naquele povo. A vida não era fácil para os das estepes. A sobrevivência era conquistada, em oposição a garantida. As vidas eram normalmente curtas, colhidas pela intempérie. Ou pelos animais selvagens. Por vezes, pelo mais cruel dos animais – um outro homem qualquer.

Mas este nascimento sossegou as mentes e aqueceu os corações dos da tribo. Estavam todos em redor da tenda de onde se ouviu o primeiro chorar de E., o momento em que o ar gelado pela primeira vez se lhe instalou nos pulmões e lhe deu o primeiro calafrio.

Passados alguns instantes, houve até quem achasse ter passado uma pequena eternidade, finalmente emergiu da tenda uma senhora, que veio até cá fora. Era de tarde. O sol ainda alto, começava a rumar às grandes montanhas de Oeste. Envolta em peles de feras, carregava um pequeno fardo ao peito. Sorria, ainda que a força nas pernas lhe falhasse, e apesar de na cabeça pouco mais existirem tonturas e vontade de descansar, sorria. Orgulhosa, mostrava agora à sua tribo o seu mais novo elemento.

E. tinha os olhos da mãe.

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