Humor Negro: Tá porreiro puto, continua assim.

A propósito do espectáculo de stand-up Ruído Negro, que decorreu nestas três últimas noites no Rivoli, no Porto, escrevi o que abaixo se segue. Inspirado no tema da segunda noite, tentei imaginar um cómico de stand-up diferente, que acabou por ser talvez uma fotocópia retorcida do Pagliacci. Vejam-me tentar ser engraçado, e a falhar redondamente.

Deus. Onde está Deus? Ou Jesus? Sabem onde está Jesus? É que eu encontrei Jesus. Irmãos! Irmãs! Eu encontrei Jesus. Querem saber como o fiz? Vou-vos contar uma história.

Imaginem um tempo distante. Um tempo em que gola alta e calças de pára-quedista ainda estavam na moda. Aquelas, de bolsos nos lados. Nesse tempo, um tipo (este tipo) é pequenino, e enchem a cabeça pequenina dum tipo pequenino com contos dum tipo grande de barba grande, no Céu.

Começam com “Porta-te bem, que Deus está a ver!” ou “o menino Jesus está a ver!”, se forem de lares onde o menino Jesus e o Pai Natal são a mesma coisa (isto nunca vos confundiu? Um homem velho e um rapaz serem um e o mesmo? Tão estranho...)

“Não te preocupes com os meninos ciganos que te bateram e te cuspiram na cara e te roubaram o lanche! Deus há-de os caçar”. Ai há-de... Até hoje vejo esses ciganos, filhos duma grandessíssima, já crescidos, numa casa grande, com carro grande, mulheres grandes (que não há ciganas velhas slim), filhos, vidas equilibradas, diria eu que vejo-os de longe para que não me esfaqueiem. Deus está atrasado, foda-se!

E quando diziam ao tipo pequenino “Se Deus quiser, tiras boas notas”? Um verdadeiro minar da capacidade pessoal para chegar onde quer que seja. “Se Deus quiser?” E que tal “Se eu me aplicar, oh avó!” Puta da velha...

Então um tipo é pequenino, e começa a procurar Deus nas coisas pequeninas. A mãe precisa de ajuda, e um puto todo ternurento tenta ajudar. “Toma mãe, olha para mim a pegar no garrafão!”

Pena que o garrafão estava aberto, e ainda tinha vinho dentro, e o vinho virou-se, e a minha mãe encheu a cara de terror, um absoluto e negro terror que a deixou branca como cal, por saber que o meu pai ia chegar daí a 15 minutos, um quarto de hora, a ressacar da tainada do almoço, e quando o pai não tem o bico molhado com o tinto do vinho, tem o punho molhado com o tinto do sangue das bentas da minha mãe.

Old-school.

Pronto, um puto ajuda e então um puto sente uns químicos na cabeça que dão a entender que a barriga tá quentinha, e julga “deve ser Deus a dar o OK”. Deve ser Deus, ou Jesus, ou o Espírito Santo, a dizer  “Tá porreiro puto, continua assim.”

Mas algo não bate certo. Um puto vai crescendo, e continua a procurar Deus. “se Deus existir, a Nicole hoje vai olhar para mim e eu vou sorrir-lhe e vamos combinar sair”. E então a Nicole olha, só que o sorriso sai como um esgar doentio, de puto que se masturba demasiado, e o sorriso dela passa a ter pena lá metido, sabem? Aquele ar condescendente de “puto do falhado”. Puta da Nicole... Onde estava Deus, a encher-me a barriga de quentinho? De fogo que é coragem? Só ficou aquele vazio da vergonha que nos empurra para os cigarros, os copos, as linhas de coca e as agulhas usadas num beco cheio de mijo. Deus também não está aí. Garanto-vos.

Então chega o dia em que a mentira cai de vez. O dia em que um tipo chega a casa e o garrafão está partido num canto. Parece que o gato o tombou. Odeio gatos, desde aí. Mas a minha mãe não foi a tempo de o limpar, e está do lado errado das carícias de alta velocidade, aquelas de mão fechada, do meu pai. Um puto já não é pequeno, mas também não é ainda grande. E lá se manda para cima do pai para salvar a mãe, na esperança vã que ao ajudá-la volte a sentir aquele quente, que Deus lhe repita “Tá porreiro puto, continua assim.”

Mas somos todos realistas, certo? O resultado é um e um só. O pai é trolha. Passa os dias entre homens que são homens, não são essas coisas metro-assexuadas. Gajos que competem entre si para serem o maior filho da puta da obra. O Boss. O martelo acaba por ser um acessório decorativo: as mãos deles chegam bem para os pregos. E então aqueles anos todos a viver o fundo nojento da sociedade, a trabalhar para criar um filho que foi um acidente numa noite de copos transformam-se numa série de golpes que deixam a minha mãe de coma, e eu estendido numa cama de hospital.

“Onde está Deus?”, pergunta um gajo, com agulhas de soro enfiadas pelo braço, coleira ortopédica colocada, apenas um olho a ver, o outro só hematomas. Todo fodido, a dizer “onde estás Jesus?”

É aí que um gajo acredita que Jesus não existe. Jesus não pode existir. É inconcebível!

Mas a vida continua. Um gajo sai do hospital e recupera. Um gajo começa a trabalhar nas obras, e tenta ser um homem que é homem, sabem? O maior filho da puta da obra! O Boss. Passam dois anos. Gola alta e calças de pára-quedista já não são moda. Um puto é agora forte, uma máquina de desancar bêbados. De lhes dizer “lembras-te de mim, meu cabrão de pena suspensa?” E como dizia Newton, para cada acção, uma reacção. Retribuição, é a palavra, percebem?

Mas um puto é burro. Existem testemunhas. Calha-lhe um advogado do estado. Cabrão do estagiário. Um puto que vai de cana. É a vida. E Jesus? Nem vê-lo.

Que merda de história, devem estar vocês a pensar. Mas eu ainda não acabei. Vamos directos ao cerne.

Jesus afinal existe. Não é um tipo porreiro, de barbas, sociável e que faz bricolage nos tempos livres, sobretudo trabalhos em madeira. Nope. E não! Não é um tipo que dá a outra face. Longe disso.

Jesus é um tipo de 1,96m, que pesa 98 Kgs de músculo, osso e mau humor. Tem cadastro. É repetente no xadrez. O primeiro nome é Ricardo, o apelido é que é Jesus. É um cabrão que podia servir de figurante numa exposição de móveis. Um filho da puta dum frigorífico. Jesus é um predador, reparem, de putos que já não são pequenos, mas que também não são grandes. Gajos das obras para ele são tipo M&M’s. Homens que são homens. Tretas! Jesus é um tipo que nos apanha no chuveiro, depois dos outros presos terem bazado, foda-se. Encontramos Jesus sozinhos, foda-se, entre a espada... ai espada! A pissa, sim, a pissa e a parede, foda-se, foda-se! Encontramos Jesus, com as nossas costas viradas ao mundo. Sentimos Jesus dentro de nós. Várias vezes, dentro de nós, sabem? Mais dentro? A explodir dentro de nós. Por favor entendam o que quero dizer com explodir.

Sentimos um quente a irradiar na barriga. É aí que finalmente ouvimos Jesus sussurrar “Tá porreiro puto, continua assim.”

Foi assim que encontrei Jesus.


Obrigado a Rui Cruz, Rui Xará e Rui Sinel de Cordes, por 3 noites de tão excelente qualidade, e alguma perversa inspiração. Desejo-lhes felicidades e salas cheias de gargalhadas.